segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Banquetes Literários das Almas desse Beco

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.  (epígrafe do blog Aldeia Poti).
Alex Gurgel | jornalista

Nas primeiras décadas do século XX, os iniciados modernistas, capitaneados por Oswald de Andrade, tinham um reduto de encontros etílicos e culturais na Rua Líbero Badaró, no centro da capital paulista, o qual denominavam “A Garçonière”, onde aconteceram os registros das primeiras discussões modernistas que antecederam à Semana de 22.

Nessa confraria, os modernistas escreveram um diário coletivo, culminando no livro “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo”, com duzentas páginas, expondo a intimidade daquelas pessoas com cartas, recados, recortes, colagens, cores, tintas, desenhos, poesias, prosa e um pouco do pensamento pré-modernista do grupo, que, mais tarde, explodiriam com a Semana de Arte Moderna.

Este “Diário d’A Garçonière” é um embrião do livro “Miramar e Serafim”, em cujo tema Oswald de Andrade buscou registrar o espírito modernista num mundo em transformação, cabendo esperanças para uma nova forma de fazer poesia. “Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo, que, fraternalmente, se misturam para formar, no ambiente colorido e musical desse retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida”, escreveu Oswald sobre aqueles encontros modernistas.

Resguardando as devidas proporções, o Beco da Lama, no centro da capital potiguar, tem sido a veia nevrálgica da vanguarda cultural do Estado. Para o leitor ter uma idéia da importância da confraria becodalamense, quando em São Paulo, os modernistas proclamavam o novo estilo literário vigente com o “Manifesto Antropófago”, o poeta Jorge Fernandes fazia versos modernos como “O banho da Cabocla”, “Tetéu” e outros, no Beco da Lama.

Vale ressaltar que o poeta Jorge Fernandes morava na rua Vigário Bartolomeu, rua paralela ao Beco da Lama, portanto um freqüentador assíduo da boemia natalense. Alguns intelectuais da província potiguar costumam dizer que Jorge Fernandes fez poesia modernista na própria "fase heróica" e, na época que Jorge Fernandes lançou seu “Livro de Poemas”, a idéia de modernismo ainda era muito frágil no Brasil, sobretudo no Rio Grande do Norte.

De acordo com os estudiosos da literatura local, Jorge Fernandes foi recomendado por Manoel Bandeira tardiamente, quando soube da poesia jorgiana, escrevendo em carta a Veríssimo de Melo: “Precisamos urgentemente da poesia do poeta Jorge Fernandes. Urgentemente!” O poeta Jorge Fernandes teve seus textos veiculados nas principais revistas modernistas paulistas, no glamour do modernismo.

Quando Oswald de Andrade se formou em Direito pela Universidade de São Francisco, seu pai, percebendo o talento jornalístico do filho, patrocinou a abertura do periódico “O Pirralho” para que Oswald pudesse escrever e expressar seu pensamento. Na mesma época, em Natal, o pai de Câmara Cascudo recuperou o jornal “A República” logo depois que o Príncipe do Tirol se formou em Direito, pela Universidade de Recife.

Cascudo era frequentador costumeiro do Beco da Lama. Era sempre visto entre amigos pelas ruelas adjacentes ao Beco ao cair da tarde, buscando inspiração para mais uma “Acta Diurna” que seria veiculada nas páginas d’A República no dia seguinte.
Segundo a historiografia da literatura local, Luís da Câmara Cascudo é considerado "a ponte" entre Jorge Fernandes e Mário de Andrade.

Ao longo do tempo, o Beco da Lama tem sido palco para as mais diferentes beldades que vêm inspirando poetas, prosadores e recheando os textos de alguns contadores de sonhos que encontra na fauna e flora becodalamenses todos os personagens para uma bom romance. Gardênia Lúcia foi durante muitos carnavais a sereia dos mares metafóricos de alguns poetas becodalamenses.

Nas artes plásticas, a primeira exposição norte-riograndense, assumidamente modernista, foi realizada pelo artista plástico Newton Navarro, em 1948, numa sorveteria no centro da cidade. Na contemporaneidade becodalamense, quadros de artistas plásticos potiguares como Valderedo Nunes, Assis Marinho, Franklin Serrão, Marcelus Bob, Léo Sodré, Gilson Nascimento, Fábio Eduardo, Marcelo Fernandes e outros, retratam, nas paredes do Bardallo’s, o cotidiano do Grande Ponto e expressam as marcas da vanguarda cultural dos frequentadores do Beco da Lama.

Enquanto os fragmentos literários produzidos durante o tempo d’A Garçonière pelos modernistas viraram um diário coletivo, anotações poéticas que se transformaram num livro registrando a inquietação daqueles intelectuais, os Boêmios Amigos do Beco da Lama e Adjacência mantêm uma lista de discussão na internet aonde recortes e colagens antropofágicas vão registrando a ebulição cultural vivida nesse recanto da Cidade Alta.

O pensamento dos frequentadores da “Garçonière becodalamense” está estampado nas páginas de alguns blogs na internet como “Alma do Beco”, “Aldeia Poti” ou “Grande Ponto”, cujas idéias são as mais profundas tentativas de revisão crítica e de reconstrução da cultura potiguar. Os blogs registram os fartos banquetes literários das almas desse mundo becodalamense. Instrumentos capazes de abrir o verbo e gritar a essência da vanguarda do Beco da Lama: Poti or not Poti, that’s Potengi!

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